domingo, 30 de setembro de 2012

Mais que a emancipação da mulher, a emancipação humana




Num feriado do dia do/a trabalhador/a, Maria Luiza Fontenele, sorridente e acolhedora, recebe Vestida em sua casa, depois de voltar de uma atividade relacionada à data. No fim deste ano, a militante inteira 70 anos de flores, lutas e vivências. Ela conta que o feminismo esteve presente quase sempre nessa trajetória. Bacharel em Serviço Social, por um curso que seria incorporado à Universidade Estadual do Ceará (Uece), cursou um mestrado em Sociologia do Desenvolvimento, nos Estados Unidos, na Universidade de Nashville. Professora desde os doze anos, mantêm a voz calma, exceto nos momentos em que o assunto é a política e o fim desse sistema que explora, o capitalismo. De Quixadá (Ce), nasceu em 1942. Aos 43 anos, assumiu a Prefeitura Municipal de Fortaleza, como primeira prefeita mulher e de esquerda de  uma capital brasileira. Foi ainda, a primeira administração escolhida por voto direto depois da Ditadura Militar, embora antes disso já lutasse. Quando a repressão tentava calar, participou do Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), e depois, ajudou a fundar a União das Mulheres Cearenses (UMC), que existe até hoje. Entre sorrisos e lágrimas, no apartamento ventilado, um olhar firme falou também sobre machismo e a pressão que é estar no poder. E estar no poder, como mulher.


Como foi a infância da menina Maria Luiza?
Nos meus 70 anos de vida e como foi forte a questão do feminismo, mesmo no momento em que eu não tinha nenhuma consciência dessa questão, ela já fez parte da minha experiência de vida. Por exemplo, talvez a fixação na figura do meu pai. A minha mãe vive dizendo que eu não brincava de boneca, que eu era sempre a professora ou a comadre ou o médico que ia visitar as outras pessoas. E eu brincava com pedacinhos de ossos, formando um curral, com bois, porque era também a imagem que eu tinha do meu pai, que era proprietário em Quixadá. O outro dado é o fato deu, muito pequena, me aliado a uma menina de uma família negra, lá no sertão. E ela era muito danada. Eu me aliava a essa menina para que nós pudéssemos fazer coisas mais danadas do que os meninos. O pulo que a gente dava do galho, cada vez mais alto, ou nas corridas. Eles faziam uns carrinhos, a gente descia as ladeiras, então quem corresse mais rápido ganhava. Eu lembro que a última vez que eu participei desse desafio, eu já tava ficando mocinha, e a minha irmã tinha feito um vestido pra mim. O detalhe do vestido é que tinha um babado aqui, que cobria os seios, que tavam nascendo. E a saia era mais larga do que os outros vestidos, que eu tinha antes, e ela enganchou na roda do carro. Eu cortei a coxa. Então pulei a cerca do fundo da propriedade pra não ser vista. Tomei banho e guardei o vestido, até o momento em que eu tive coragem de dizer que eu tinha rasgado, mas o detalhe ai é o fato da disputa. E também eu fui a única filha que apanhou dele, do pai. Então ele me bateu na frente de pessoas. Eu fiquei muito envergonhada, me urinei, e criei dentro de mim a ideia de que aquela era a última vez que alguém batia em mim. Então isso me seguiu na trajetória, nos confrontos, era muito forte essa coisa de ninguém me toca, ninguém me bate.

Como foi a vinda para Fortaleza e início da militância?
Vivi até os 15 anos, lá em Quixadá. Com 12 anos, comecei a namorar. As freiras sem saber o que fazer com a minha sexualidade, me botaram pra fazer todo tipo de atividade. Não eram atividades masculinas, mas eram atividades pouco comuns pruma pessoa na minha idade. Eu, com doze anos fiz meu primeiro discurso, dei aula pra adultos. E ao vir para Fortaleza, com 15 anos, eu fui morar próximo ao Liceu do Ceará, e lá me entusiasmei com a luta estudantil, que eu via principalmente o movimento de estudantes pela meia-passagem. Então, a partir dali, eu me engajei na luta até hoje. Eu não era do Grêmio, eu era de um clube de lideranças, eu integrava esse grupo, que era orientado e dirigido por uma assistente social. Daí a minha definição, de ser assistente social. Eu achava interessante o trabalho. Depois, conheci um trabalho que elas faziam no Pirambu. Então, ficou assim definida a minha questão profissional.

Como você se definiria, na relação ao Feminismo?
Desde o primeiro momento, que criamos a União das Mulheres Cearenses, a nossa compreensão é de que era uma luta contra o machismo. Uma luta para que a mulher fosse reconhecida, e uma luta contra a violência. Não era uma coisa assim, do feminismo pelo feminismo, era uma luta muito ampla. Até porque o que deu o maior impulso à nossa luta foi nós integrarmos o Movimento Feminino pela Anistia, portanto uma luta contra a Ditadura Militar. Então, o feminismo já vinha recheado dessa luta maior. E não se reduzia a uma luta contra os homens. A gente tinha uma abordagem mais forte, contra o machismo, seja ele por parte de homem ou de mulher.

A sua imagem que ficou, depois de já ter sido prefeita, foi a imagem da Maria Luíza real?
Eu, ao entrar no Movimento Feminino pela Anistia, eu me apaixonei pela causa da liberdade. Então, talvez essa seja uma identificação maior, ser a favor da liberdade, ser contra a injustiça, a discriminação. E nós imprimimos muito isso ao movimento da nossa entidade, que ainda hoje, existe, a UMC. E nunca fui inchada [ressalta] assim a disputar eleição para deputada, nunca tive interesse pelo poder. As pessoas acham isso meio estranho, mas eu não tinha. Entrei para dar um maior espaço pra luta da anistia. E ai fui eleita, A segunda mais votada, em Fortaleza. E a minha plataforma de luta, digamos assim, tinha a questão da educação, eu era professora... e a questão da mulher. Então, foram esses eixos que operaram não só a minha luta, e como eu tinha uma vinculação muito grande com a cidade, eu cheguei aqui com 15 anos em 1958, e quando eu me candidatei, foi em 1978. Vinte anos depois eu já tinha uma relação muito profunda com a cidade, com a questão da favela, fui sempre muito ligada à questão do Pirambu. Um outro eixo era a questão urbana, principalmente, a questão da habitação. Eu estagiei no Pirambu, em outras favelas. À época, era um grupo de pesquisa que estava sendo feito no Pirambu para detectar a qualidade de vida e uma luta para que o pessoal não fosse retirado de lá. E também estagiei numa comunidade próxima ao Pirambu, que era o Arraial Moura Brasil, que fica hoje onde é o Marina Park. É tanto que existia aquela igrejinha de Santa Terezinha. Na medida em que a cidade foi crescendo, a orla marítima se apresentava como sendo uma coisa muito importante e a população tomava o centro, quer dizer, um espaço grande, no Arraial Moura Brasil, passando pelo Marina Park até a Barra do Ceará.

Era como uma higienização social?
Era uma coisa da especulação imobiliária. Porque justamente estava se valorizando e ai as pessoas, por qualquer razão, queriam morar junto da praia, era uma tentativa de ser construído hotéis, restaurantes. Na campanha eleitoral, eu também tornei essa questão como um eixo. E lógico que eu nunca tive reservas. Eu sempre disse o que tinha vontade de dizer. Eu me abraçava com as pessoas. Então isso é uma coisa que ficou pra vida toda. Eu sou mais identificada com a luta do que com o poder.

Seu envolvimento com a política, a militância, surgiu quando a senhora veio para o colégio de freiras?
Sim, porque o pessoal ligado a igreja, ia no colégio nos visitar, nos convidando para participar da Juventude Estudantil Católica (JEC). Antecedeu a Teologia da Libertação. Era uma coisa mais voltada para setorial. Então, nesse período aí, você tinha JEC, JUC [Juventude Universitária Católica]. Foi quando eu era convidada. E comecei a me interessar, mas nunca na questão eleitoral. Eu era totalmente por fora, digamos assim. Quando começou a luta da anistia, que a gente procurava muito os parlamentares para que eles dessem força a luta pela anistia porque iam ser apresentados os projetos, iam ser votados na Câmara. Então, a gente buscava esse apoio. E foi quando eu resolvi me candidatar á Deputada. E fui eleita no primeiro mandato, foi em 1971. E depois, em 1982 me candidatei novamente, fui reeleita, e sempre essa questão da anistia, da mulher, questão urbana, questão da educação, e o meio ambiente. Quando a gente começa a perceber que tem um problema de degradação do meio ambiente. é tanto que  projeto mais forte que eu apresentei como deputada foi contra a utilização dos agrotóxicos, que hoje tá sendo discutido. Muitas pessoas, por conta da alimentação, tem problemas. Eu por exemplo, tive problema de câncer de estômago. O segundo mandato também é muito voltado pra isso, é a época em que a gente conquista a anistia, a gnete dá muito mais força à questão da mulher. Ai é quando surge também a ideia de eu me candidatar a prefeita de Fortaleza.

Qual foi o momento em que o feminismo entrou na sua militância?
Eu digo que ele aparecia a todo momento, porque por exemplo, quando tentaram botar pra fora as prostitutas lá do Arraial Moura Brasil, onde eu tinha feito estágio bem próximo a elas, portanto eu já tinha conhecimento de que o nosso jornalzinho... O Edson Silva, que foi radialista, ele tinha uma coluna que tratava da questão da prostituta. Eu me interessei a dar aula de adulto para elas. Não cheguei a dar, não, mas tive interesse em dar. Então, a gente sabia muito das histórias, do sofrimento... Então era uma coisa que me sensibilizava muito. O próprio Serviço Social, o fato de ser só mulher à época, eu acho que nós fomos chamadas para cumprir um papel no movimento estudantil. E dar um reforço na questão da mulher. Então não era a questão do feminismo, da luta feminista, mas tinha uns lampejos em relação. E quando eu entro no Movimento Feminino pela Anistia, ai sim, nós começamos a discutir o movimento em 1974, e em 1975, que ele foi criado. Terminando o MFPA, imediatamente a gente começa a UMC [fundada em 1979], porque precede a luta das mulheres, em todos os lugares. As mulheres tinha um destaque, nessa época que eu fui eleita deputada.  É lógico que eu fui eleita por conta dessa questão da mulher, e as mulheres já estavam cumprindo um papel muito interessante. E ai a gnete ganhou o mundo em torno dessa questão. Tudo que tinha de encontro nacional, regional, e quando chegou em 1995, já tinha passado por dois mandatos de deputada, o mandato de prefeita. Teve aquele Encontro Internacional de Mulheres na China, e nós fomos destaque lá, por conta da nossa faixa, que era grande e uma boneca imensa, dizendo contra a sociedade patriarcal, contra o machismo e a sociedade produtora de mercadorias. Então chamou muito a atenção, porque a gente estava na luta feminina e chamando a sociedade produtora de mercadoria. Até 1995, anexamos um ingrediente novo.

E como foi a sua entrada no Partido dos Trabalhadores?
O Partido dos Trabalhadores, eu digo que foi uma invenção daquele momento. Quando surgiu o meu nome como candidata do PT, então eu teria que ter uma proposta diferente, não podia ser aquela do PMDB, que estava naquele momento, que tinha sido oposição, mas já era poder e tava com uma postura totalmente de situação. E eu era sempre a oposição. Então foi uma rejeição, ser candidata pelo PT. Tinha setores do PT que não queriam a convenção. A impressão foi que naquele momento foi apenas um pequeno grupo de pessoas, chamado Jornal Trabalho, que se posicionou, o resto...

Por que era outra configuração de PT...
O PT era um partido pequeno, não tinha praticamente ninguém no poder. Eu tenho impressão que na época que eu fui candidata uma outra pessoa foi candidata pelo PT. Tinha parlamentares, mas a nível de executivo, não tinha. Então, após a candidatura, não tinha possibilidade de vitória, quer dizer, não tinha dinheiro, o partido era pequeno, era radicalmente oposição. Como poderia ser eu eleita? Na primeiras sessenta, meu nome tava lá na rabada, mas tinha outros. O Paes de Andrade, eu lembro que era candidato que tinha uma preferência, que tinham mais chances, pela estrutura que tinham. Um porque era do PMDB, e o outro porque era do PDS , que eram partidos grandes. Então, eu não tinha nenhuma chance. Esses movimentos, dos quais eu participei desde o Liceu, até a minha candidatura, estruturam a campanha. Foi uma coisa extraordinária. Eu tinha comitê de jovens, de mulheres... o comitê de bancários tinha quinhentas pessoas. Até porque tinha o carisma. E tinha essa militância marcando a minha história, principalmente de Fortaleza, mas foi uma proposta que galgou o sentimento de mudança e de fazer uma coisa diferente.

Como foi ser prefeita mulher e de esquerda?
Pra prefeita, surgiram elementos muito fortes da questão do machismo. Por exemplo, uma pessoa chegou e disse, você é daquela cidade em que até as pedras são galinhas. Ele não sabia como me degradar, então fez referência ao fato de que existia uma galinha choca em formato de pedra, em Quixadá. Mas já na época de deputada estadual, um militante de esquerda aqui do Ceará foi a Tauá questionar a Igreja porque tava me apoiando, e eu era separada. “Como é que a Maria Luiza vai ser eleita? Dando?”. Ai teve um padre lá que assim que o cara terminou de falar, ele disse: “É dando que se recebe!”. Uma forma irônica de questioná-lo, sabe? E, como a gente fazia reunião da união das mulheres, uma vez teve um senhor, todo tempo dizendo piada, e eu perguntei qual era o problema. AI ele disse: “Não, porque, você vem aqui ensinar as mulheres a se separar dos maridos”. Porque eu era separada. E assim, muitos fatos. Ai eles diziam que a gente era mal amadas, sapatão... “Olha ai, nem são casadas, são separadas...” Uma forma de denegrir e desqualificar o movimento. Por exemplo, como deputada, era difícil eles me enfrentarem, porque como eu tinha uma facilidade de argumentação grande, e era muito bem assessorada, então tinha muita base nas questões que eu levantava, eles tentavam me abordar pelo aspecto da sedução. Eram poemas, eram abraços...

No século XIX, e mesmo no filme da Margaret Thatcher podemos ver isso, quando as mulheres iam fazer discursos, os homens partiam para a questão emocional, chamavam elas de histéricas, pelo tom que as mulheres falavam, e não pela argumentação que elas tavam usando. Isso aconteceu com você?
Comigo, marcou o tom de voz. Mas nunca eu fui chamada de histérica. Porque não era o tom de nervoso, era o tom de ser enfática nas coisas. Mas... EU nunca chorei. Isso era uma coisa muito importante, porque eu nunca chorei falando. Por exemplo, o deputado quando chora, eles ficam caçoando. Por outro lado, eu chorava em outras emoções. Eu usava a expressão prantear, porque eu acho muito bonita, prantear um colega que morreu... Então, eu nunca tive a preocupação de sustentar o choro pra num dizer que era mulher, de jeito nenhum. Um relato, até hoje eu me emociono, de uma senhora, quando nós começamos a discutir a descriminalização do aborto, teve uma senhora que perdeu um filho. Num é que ela tenha abortado, ela perdeu. E quando nós fomos pro enterro, ela tinha oito filhos, o garotinho perguntou: “Mãe, amanhã o pedaço de pão vai ser maior”. Porque tinha morrido o irmão [emociona-se]. Uma das coisas piores que fizeram com os homens, foi não terem o direito de chorar, por que mostra fraqueza. O choro é emoção, e emoção faz parte do ser humano. E eu sempre levei a emoção para todas as lutas. Eu nunca deixei que qualquer situação, inclusive, como prefeita... Um dia eu acordei, e comecei a chorar, porque tava chovendo. E eu fiquei imaginando quantas pessoas naquele dia não teriam casa [silêncio e lágrimas]. Eu sou uma pessoa que não professo nenhuma fé. Tenho formação cristã, mas não professo nenhuma fé. Mas naquele momento, eu elevei o meu pensamento aos céus e pedi a Deus para não perder a minha sensibilidade pelo fato de estar nessa situação, como prefeita. E mantive. Um companheiro do PT, uma das coisas que ele ressaltava, o Gato, ele dizia que uma das coisas que ele reassaltava em todo canto, o fato deu nunca ter me enredado nas teias do poder. E eu acho isso uma cosia sensacional.

E como prefeita, as situações de machismo...
Como prefeita, teve uma situação muito dolorosa. Uma revista pornográfica me botou na capa da revista. E esse eu sinal de positividade, eu sempre que faço isso abro um sorriso pra dizer que a coisa tá boa, ele botaram um pênis. Então qual é a simbologia disso ai? É dizer que se eu não era homem, eu tinha que ser sapatão. o “vai limpar a cidade” não era uma forma como se dirigiriam a um homem, era como dizer assim “limpa a casa! É o seu papel mesmo”.

Como foi militar em época de Ditadura aqui no Ceará e como mulher?
Além de nós termos um grupo muito forte, nós fomos o terceiro núcleo de mulheres do Brasil [o MFPA]. Nós tínhamos uma advogada extraordinária, Vanda Sidou, falecida já. Nós tínhamos, na política local, algumas figuras que amorteceram a questão em relação a minha pessoa. Uma figura era o governador Virgílio Távora. Eu não tô botando no Virgílio, as excelências do que eu vivi, eu tô dizendo como que era... Ele respeitava a gente. Ele mandou avisar que eu tivesse cuidado com a minha bolsa porque a repressão tava tentando me incriminar com maconha. Você num vê isso, às vezes, entre companheiros do mesmo partido ou do mesmo movimento. Ele respeitava bem a oposição, que era autêntica [ênfase], digamos assim. E outra pessoa, o presidente da Assembléia Legislativa [Aquiles Peres Mota], ele era casado com a irmã do Cid Carvalho, que é meu cunhado.  Quando eu resolvi entrar de calça cumprida na Assembleia, que era proibido. Ai ele me chamou e disse: “Cê tá pensando que eu vou lhe dar ibope? Vou não! Vou mudar o regimento”. [ em 1979]. Mas ele expressou: “Maria, pelo amor de Deus, venha vestida direito, que você de vestido já me dá trabalho, imagina de calça cumprida”. Ou seja, “calça cumprida”, homem da mais trabalho. Uma vez eu tava falando, um graduado passou na praça e disse: “Ah, essa bichinha lá dentro da prisão!”. Ou seja, certamente pensando em me torturar, ou me estuprar. Quando meu pai me bateu, eu tinha nove anos, parece que eu interiorizei essa coisa de que ninguém mais me batia. Quando houve aqui a chegada do Paulo Maluf, nós fizemos uma manifestação e um cara veio com um cassetete me bater. Eu dei um escândalo tão grande que imediatamente correu todo mundo pra mandar ele parar. E teve um outro momento, não ligado a ditadura, mas eu fui sequestrada [ há cerca de cinco anos], eles queriam o meu carro para fazer um assalto, supostamente dois ladrões. Quando eles saíram do José Walter no rumo da Pajuçara, eles adentraram numa trilha não asfaltada, o carro atolou. E eu disse, deixa eu tentar tirar o carro. Eles disseram “se partir, a gente manda bala”. Eu disse, “vou partir não”. Mas eu não consegui, eles tinham quebrado a parte de direção do carro. O mais novo disse pro outro “vamos deixar a mulher ai”. “Abre a bolsa dela”. E tinha quarenta reais. “Num tá vendo que essa mulher num só tem esse dinheiro. Apalpa ela”. Quando ele disse “apalpa ela”, eu disse “ninguém me toca!” [exalta-se]. Até então eu não tinha tido uma reação de força, eu tava sempre concordando, conciliatória [sorri].Mas nesse momento eu disse “ninguém me toca!”. Foi quase que certo, porque parece que eles perceberam que a cosia era braba. “Deixa a mulher ir embora”. No posto, lá na frente tinha um carro da política rodoviária, com um reboque.

Você vê que aquele momento, a minha história de vida vai galgando um patamar elevado, até o momento que nós chegamos a conclusão que a política não resolve minimamente os problemas humanos. Através da história de luta, que as pessoas tiveram conquistas.

A política de uma forma mais institucionalizada?
Tudo, tudo que diz respeito à relação com o Estado e com o poder. Partido, sindicatos, tudo que diz respeito à essa relação.

E é o que também acredita o movimento  no qual, a senhora se organiza hoje, que é o Crítica Radical?
Quando nós fomos à China, que já tinha acontecido? Eu tinha passado pela Prefeitura, e tinha visto os limites do poder. Nunca numa percepção individual, sempre um resultado dessa reflexão coletiva, e o próprio movimento de mulheres, a gente via que ele tava tendo um limite. Por quê? Porque o que a gente tava percebendo é que a mercadoria e o dinheiro dominavam todos nós. É assim como um quebra-cabeças que foi sendo montado. Quer dizer, na prefeitura as coisas não deram certo. Num dava pra fazer o que nós távamos querendo através do Estado. A Ciência tava substituindo a mão de obra humana e as fábricas sem poder fazer as greves que faziam anteriormente, porque, por exemplo nas metalúrgicas tavam substituindo o torneiro, o operário, pelo torno mecânico. E a nível da luta socialista, a queda do Muro de Berlim e nós achamos que aquilo ali não era o socialismo que Marx tinha previsto. Esses quatro elementos foram formando essa estrutura de reflexão e esse arcabouço para nós pudéssemos chegar a conclusão de que a política não resolvia. Nesses anos todos, de lá pra cá,a gente tá na luta, mostrando que não é pelo trabalho, não é pela política, não é pelo Estado, que a Democracia não assegura a igualdade e fraternidade e solidariedade. Tem que ser uma sociedade cuja forma de relação não seja permeada pelo dinheiro e nem pelo poder.

A senhora e o Movimento Crítica Radical defendem o fim do capitalismo e a emancipação humana...
Veja bem, não é a gente que defende. Nós achamos que o capitalismo tá na sua crise final, nada mais justo do que nesse momento ter um movimento que supere essa sociedade da destruição e construa uma sociedade em outras bases, portanto, não capitalista. A nossa abordagem teórica percebe que essa é a fase do capitalismo. Dessa crise de mão de obra substituída pela tecnologia. E a cada dia você tem mais destruição do meio ambiente. Através da lógica do progresso, da competição, do movimento do dinheiro, não dá pra ir por ai. Então, você tem que fazer outra coisa completamente diferente, e o socialismo não fez isso.

E como vocês pensam essa outra sociedade possível? Porque é meio complicado a gente imaginar.
É, muito complicado, porque a sociedade em que nós vivemos teve no decorrer da sua história um elemento de matrix, de reflexão e de ideologia, que faz com que nós não consigamos pensar numa cois diferente, fora dos marcos do dinheiro e da questão de mercadoria. É como se o capitalismo tivesse botado na nossa cabeça um cabresto. E qual foi o instrumento filosófico? O Iluminismo. Dizendo o seguinte, que para trás era o atraso, era o terror que matou as mulheres, chamou de bruxas. Não foi. O que matou as mulheres já foi a ideia da produção industrial do capitalismo. E o quê que você tem? Um sistema que se impõe pelas armas e pelo terror. E mostra que só é possível ter o capitalismo com mais progresso. Embora com isso, se destrua o meio ambiente. E outra coisa, depois que surgiu o capitalismo, é como se não pudesse existir outra coisa diferente. É como se nós tivéssemos sido impedidos de pensar qualquer possibilidade. Nas outras sociedades, as pessoas tinham um certo papel como protagonistas. O quê que nós temos hoje? Nós somos sujeitados. Quem delimita os nossos espaços? Quem faz avançar a ciência e tudo? É o dinheiro...

Com relação ao meio ambiente, vocês debatem como a destruição dele está completamente relacionada ao capitalismo, ao sistema econômico que a gente tem, não é isso?
Quando você diz que as pessoas tem que comer mais e melhor, se você diz que as pessoas tem que ter a última geração de geladeira, a última geração de televisão, a última geração de carro... Né progresso? Todo o sistema funciona de forma a que você tenha essas últimas gerações. Fez com nós sejamos a extensão das coisas.

E com relação à emancipação humana?
Se não houver uma retirada dessa matrix, para se realizar essa ruptura, não poderá ter emancipação. No momento áureo da nossa discussão do feminismo, não é possivel a emancipação da mulher, nesses marcos não é. Você pode ter o quê/ A mulher ocupando os espaços dos homens. Dentro do capitalismo, você tem a mulher tendo dinheiro, a mulher tendo poder de compra, a mulher dirigindo aqui ou acolá, porque quem dirige o sistema são os homens. Você pode ter independência financeira, mas emancipação não, porque nós somos sujeitadas à mesma lógica em que os homens estão. Nós dizemos que limite do sistema esgotou-se. Todos os movimentos que deram vida ao sistema até aqui esgotam a política, esgotam a democracia, esgota a jurisprudência, esgotam o modelo de família, esgotam o feminismo. Então nós vamos lutar para quê? Para a mulher serem cada vez mais sujeitadas, porque os homens estão totalmente atolados. Então nós queremos que as mulheres deixem de cuidar dos seres humanos para cuidar do dinheiro. Vai ser desastre por cima de desastre, porque o mundo do macho chegou a fim, e não tem perspectiva, só a barbárie que está chegando aí.

E na vida pessoal? Você se casou uma vez, se separou, teve uma filha...
No primeiro casamento, os tínhamos a intenção de ter não só um filho. Engravidei e perdi o primeiro.E pensava que tinha muito a ver com a contradição que eu tava vivendo. Em ser militante das causas sociais. E de noite eu dizia pro povo resistir e de dia o carro da Fundação ia retirar o povo das favelas num sei pra onde. Ai eu pensava que o primeiro tinha sido resultado dessa relação conflituosa que eu vivia. AI perdi o segundo. Então resolvi fazer exames para saber o que tava acontecendo. Vi que não tinha nada. Comecei a fazer um tratamento psicológico e tinha um pouco a ver com essa questão da mulher. Ou seja, ser mãe é ficar presa. Ai eu sustentei a Andreia, que era a terceira gravidez. Depois tentei uma quarta vez, para dar a Andréia um irmão [sorri]. Perdi. E a quinta tentativa eu tive uma gravidez tubária. E por pouco não morri. Cheguei lá na hora de mudança de plantão do médico. Fui transferida para um hospital particular, já em coma. Me submeti a uma cirurgia rapidinha. No mesmo ano em que eu me formei, eu me casei e meu pai faleceu, foi em 1975. Separei onze anos depois. Eu tive uma segunda relação quando eu era deputada. E depois que sai da prefeitura.

Que aspecto do feminino – esse feminino construído histórica e culturalmente – a senhora identificaria em si?
Veja bem, esse aspecto da sensibilidade eu acho como sendo um ponto fundamental. O fato de a gente ter essa coisa da intuição, da percepção, ter feelings para determinadas coisas, que tem a ver com a orientação que a gente recebe pra cuidar. Eu acho isso formidável. O fato de você poder chorar e poder se emocionar é extraordinária, porque você é sensível aos problemas do outro. O fato de ser generosa. Nunca foi característica minha destratar uma pessoa, desclassificar, pôr em ridículo, eu chamo isso ser generosa. Não acentuar ou as dificuldades da pessoa para colocá-la em situação difícil. Do que eu adquiri na luta foi não aceitar ser considerada inferior, que eu acho que é um dos maiores dilemas da mulher.

Para concluir, de tudo que a senhora viveu em todo esse tempo, na militância, na relação com o feminismo, estando no poder... A senhora se arrepende de algo ou prefere não se arrepender de nada?
Não é uma coisa de mim, se arrepender. Que eu acho que também é uma questão da mulher. Muitas vezes, numa tomada de decisão, porque como a gente se acostuma a que os pais decidam, a que os irmãos mais velhos decidam, os que tão no poder, os líderes decidam, os companheiros do movimento decidam, quando chega o momento em que só você pode decidir, ais ao os momentos que eu lamento que eu não fui muito rápida ou precisa nas decisões. Agora eu teria seguido novamente essa trajetória, porque só ela me permitiu a chegar ao esclarecimento e eu acho que a pessoa integra, que eu sou, e inteira. E inteira [felicita-se]. Essa coisa de separar os pedaços, é só racional ou é só num sei o quê. Eu sou bem inteirinha [sorri].